Esquerda de direita, consequências

Publicado por: Editor Feed News
23/02/2020 13:24:55
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Courtesy Pixabay
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Léo Rosa de Andrade

O Renascimento (Século XV) nos acenou com a racionalidade. Nasciam os primeiros contrapontos à irracionalidade religiosa. Irracionalidade no sentido de conduzir-se por fundamentos religiosos: o religioso, por definição, pensa e age, necessariamente, em desconformidade com os ditames da Razão.

 

Bitolas valorativas (e morais) não são escolha pessoal. As circunstâncias no-las dão prontas. Em as tendo, contudo, podemos medi-las com as do mundo, ser razoáveis. Razão: “Faculdade que tem o homem de estabelecer relações lógicas, de conhecer, de compreender, de raciocinar” (Aurélio).

 

O religioso renuncia a essa lógica. Ele “trabalha” com outro sistema. Não ajuíza sobre os fatos do mundo, admitindo ou refutando valores circulantes. O religioso renega a responsabilidade de eleger o razoável. Quem crê no divino estima o mundo pautado em verdades que acata por fé.

 

Fé, na tradição católica, é uma virtude teologal. A divindade é sua origem, motivo e objeto, e funda o agir moral do cristão. Trata-se do penhor da presença ativa de “deus” nas faculdades do humano. Por fidúcia, os cristãos creem no seu deus, nas suas verdades reveladas, nos ensinamentos da igreja.

 

Por fé o humano exerce sua “livre” entrega à divindade. Todavia, “deus” não é cognoscível por diligência individual. Profetas falam e seus intérpretes avocam a si o conhecer da “palavra”. O crente aliena-se do encargo de saber ele mesmo o que o seu deus disse ou quis dizer com o que disse.

 

O Brasil vive uma quadra religiosa extremada. Multiplicam-se “pastores” exegetas. O sucesso das empreitadas pastoris não está em céu futuro, mas em resultados imediatos (vigência capitalista). Com esse “argumento”, as igrejas pentecostais abiscoitam cordeiros da confissão católica.

 

Bem, a Tradição Iluminista Republicana separou igrejas e Estado. A razão política despiu-se do dogma religioso. Não obstante aqui se conservarem embaraços, a política tornou-se manifestamente relação mundana de poder, ainda que a força religiosa se tenha intrometido quando pôde.

 

E sempre se pôde intrometer porque nossa subjacência cultural é gravada de misticismo. Engendramos um sincretismo de religião e mundanidade. Não obstante a Revolução Francesa haver fascinado nosso momento republicano, jamais subjetivamos adequadamente a ideologia liberal.

 

Quem introjeta valores é movido ou refreado por deliberações valorativas subjetivas. Por aqui, se já não se morre por religião, a maioria tempera opções políticas com religiosidade. Enquanto nosso arcabouço jurídico-político é formalmente republicano, laico e burguês, nosso eleitor não o é.

 

Eis um conflito (interno) de duas concepções civilizacionais: uma medieval que nos batizou e que permanece robusta e com capacidade de reprodução, outra iluminista que jamais se realizou plenamente, ainda que seja desiderato de grande parcela secular e democrática da população.

 

Deve-se anotar que a fração intelectual dos militantes políticos brasileiros, a intelligentsia oriunda das universidades e do mundo artístico, precipuamente, refuta o liberalismo como expressão de atraso, ao tempo em que acolhe alianças com todas as expressões religiosas disponíveis.

 

Esses acertos paradoxais são justificados pela “objetividade”. Em nome da densidade eleitoral de um candidato, sacrificam-se programas partidários. Voto é a moeda de trânsito para o poder, então se o busca a qualquer custo. À direita e à esquerda, a notoriedade “recomenda” a candidatura.

 

Há bom tempo não debatemos ideias. Não fazemos propaganda de um pensamento. Trabalhamos com marqueteiros, com a oitiva do povo e a devolução da sua vontade pesquisada como discurso demagógico. À direita e à esquerda fala-se o agradável, não o necessário.

 

Desprezo dos valores iluministas, marketing de conveniência, alianças com figuras notórias sem compromisso programático, espaços solicitados e ofertados a padres e pastores nos trouxeram a questão religiosa de volta à pauta da República. Responsabilidade mais da esquerda que da direita.

 

A direita é a odiosidade que sabemos. Mas esse clima de conflito é mercê dos descaminhos da esquerda de direita (corporativa, patrimonialista, ladrona, mentirosa, clerical). Seus desmandos deram pretexto à direita fanática aplicada ao zelo religioso: nosso presidente há-se por vontade divina.

 

Causações medievais: política desmoralizada; religião como argumento de Estado. Esquerda com militância cristã (Comunidades Eclesiais de Base fundaram o PT); cristianismo militante no Executivo e em parte do Legislativo (cristianismo cultural). Retorno à irracionalidade religiosa.

 

Implicação: terrorismo (joga-se bomba); queima de livros (censuram-nos); opressão de ideias (professam uma única); negação de gêneros (se os reduz à “natureza’’); insulto a mulheres (intenta-se restabelecer seu “lugar de vocação”); rezas em casas públicas (refuta-se o laicismo).

 

Conflito de civilizações. Nossos alicerces ideológicos ibéricos obnubilam as Luzes. Sobre essa pedra edificaram-se os reacionarismos igrejeiros que nos habitam: eles produziram nossa Sociedade desigual e violenta; eles rebrotaram no tempo que vivemos. Que se pode fazer à esquerda?

 

Não será com as práticas da nossa esquerda de direita, que jamais entendeu duas questões fundamentais: a obra histórica da burguesia e a questão religiosa. Talvez por isso vacile em relações ideologicamente comprometedoras com o atraso que ainda nos frequenta as relações sociais.

 

Edito do Manifesto do Partido Comunista (Karl Marx; Friedrich Engels): “A burguesia desempenhou um papel altamente revolucionário. A burguesia, lá onde chegou à dominação, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem misericórdia todos os variegados laços.

 

Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu cortejo de vetustas representações e instituições, são dissolvidas O que era das ordens sociais e estável se volatiliza, o que era sagrado é dessagrado. A burguesia [...] arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a civilização”.

 

Ensinam, assim, Marx e Engels: a burguesia superou, lá no século XVIII, questões de mentalidade com as quais ainda estamos engalfinhados à direita (o que soa coerente), mas também à esquerda (justificando alinhamentos a concepções – e a instituições – reacionárias de mundo).

 

Não olvidar: nossa incursão aos templos deu-se antes dos reacionários que governam. O lulopetismo estribou na religião sua relação com a Sociedade. Flertou com um sistema milenar de dominação. Mas, ora, “as ideias dominantes de um tempo foram sempre apenas as ideias da classe dominante.

 

Quando o mundo antigo estava em declínio, as religiões antigas foram vencidas pela religião cristã. Quando as ideais cristãs sucumbiram, no século XVIII, às ideias das Luzes, a sociedade feudal travava a sua luta de morte com a burguesia então revolucionária” (Marx; Engels, Manifesto).

 

Talvez Marx e Engels não sejam de esquerda o suficiente para fornecer matéria intelectual a muitos sedizentes esquerdistas. Contudo, a quem o tem como marco teórico de superação do conservadorismo, é inescapável: o Iluminismo (as Luzes) fez-se na contramão da mentalidade religiosa.

 

Entretanto, empacamos nesse estágio civilizatório. Retrocedemos ao fundamentalismo cristão. Então, não surpreende que germinem (mais uma vez) machismos, fascismos, racismos etc, tudo assentado em alicerce ideológico religioso. Um cristão férvido compreende o mundo como religião.

 

De efeito, é difícil falar em voto no Brasil sem declarar gosto por religião. O político, regra geral, associa-se aos céus, ao divino, ao arcaico. Como, dado isso, haverá de se comportar a esquerda? Ora, como esquerda. Senão, atua-se por alienação; tira-se da política a função do esclarecimento.

 

Tancredi a Don Fabrício: “Se não estivermos presentes, eles aprontam a República. Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude” (O Leopardo, Lampedusa). Ora, o estar presente da nobreza italiana não fará uma boa República. Novas aparências, velho establishment.

 

Religião, o ópio do povo. O Brasil será outro fundado nas mesmas crenças que negam o humano como agente da História? Se a atividade política for uma soma eleitoral, tudo serve, sobretudo à direita. Conceitos e programas, jeitos da esquerda, pedem militância com compromisso político.

 

O recurso político (não a demagogia eleitoral) são o confronto de ideias e a persuasão. Bolsonaro tem os seus crentes; é concernente. A incongruência é a esquerda de direita: Lula mandou o PT criar núcleos evangélicos por todo o Brasil. República, Iluminismo, laicismo ainda são revolução.

 

Léo Rosa de Andrade

Doutor em Direito pela UFSC. Psicólogo e Jornalista.

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