Desencapsular-nos: eis a questão!

Publicado por: Editor Feed News
08/04/2014 16:17:48
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LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil.



Desencapsularização.Desencapsular-nos significa romper a casca do ovo em que vivemos para ver o mundo como ele é. Selecionamos 18 países (dentre os melhores IDH) que praticam o capitalismo evoluído, distributivo e tendencialmente civilizado e chegamos às seguintes médias: PIB per capita de USD 50.084, Gini de 0,301 (baixa desigualdade e, ao mesmo tempo, pouca concentração da riqueza nas mãos de pouquíssimas pessoas), 1,1 homicídios por 100 mil habitantes, 5,8 mortos no trânsito por 100 mil pessoas, 18.552 presos (na média) e 98 encarcerados para cada 100 mil pessoas.

Com base nesses dados objetivos torna-se possível fazer uma graduação entre os diversos capitalismos vigentes no mundo ocidental. Quanto mais o país se aproxima desses indicadores sociais, econômicos e criminais, mais tendencialmente civilizado é (e mais inclusiva a sua política criminal). Quanto mais se distancia, mais se aproxima do capitalismo selvagem, parasitário e extrativista (que tende a praticar políticas criminais fracassadas, fundadas na crueldade e na vingança).

O Brasil, que segue ferrenhamente o capitalismo mais selvagem e mais primitivo (extrativista e, ademais, patrimonialista), tem renda per capita de USD 11.340, Gini de 0,519 (0,51: país exageradamente desigual), 27,1 assassinatos para 100 mil pessoas, 22 mortos no trânsito para cada 100 mil, quase 600 mil presos, 274 detentos para cada 100 mil habitantes; é o 16º país mais violento do planeta e conta com 16 das 50 cidades mais sanguinárias do mundo.

Estamos diante de duas realidades completamente distintas: somos 25 vezes mais violentos que a média acima mencionada, dos países tendencialmente civilizados. Ou seja: comparativamente ao grupo de elite citado, somos um país reconhecidamente bárbaro. Por que falamos em países "tendencialmente civilizados"? Porque Estado de direito perfeito (respeito a todas as normas limitadoras do poder, normas internas e internacionais) não existe. Capitalismo totalmente civilizado (inteiramente domesticado, contido, limitado), sem nenhum tipo de discriminação, de desigualdade, tampouco existe.

 

Conhecidos os extremos econômicos (capitalismo tendencialmente civilizado em oposição ao capitalismo selvagem, extrativista) assim como suas tendências político-criminais, cabe sublinhar que existem incontáveis situações intermediárias. São muitos os tons de capitalismo bem como de política criminal. Os EUA, por exemplo, ostentam um capitalismo indiscutivelmente próspero, mas com 4,7 assassinatos para cada 100 mil pessoas também são violentos (quando comparados com os países do primeiríssimo mundo, cuja média é de 1,1 óbito intencional para cada 100 mil). A razão? Dentre tantos outros fatores, reside na desigualdade, comprovada pelo elevado índice de Gini. Para melhor visualização do que estamos tratando, vejamos: (clique aqui para ver a tabela)

 

Claro que não é somente a desigualdade socioeconômica que gera violência. Não se pode fazer uma relação direta absoluta (de causa e efeito) em 100% dos casos entre desigualdade e violência. Singapura é um país desigual, tem Gini alto (0,47), maior que o dos EUA (0,45), mas mesmo assim tem baixo índice de violência (0,3 mortos para cada 100 mil pessoas, contra 4,7 dos EUA e 27,1 do Brasil). A cultura da não violência, o rígido controle dos órgãos repressivos e o controladíssimo padrão comportamental também valem muito (assim como o velho tabu do sangue). Mas impõe-se observar que Singapura é uma exceção (no grupo escolhido), que acaba confirmando a regra: onde há muita desigualdade, a tendência é existir muita violência. Quanto mais desigual e menor a renda per capita do país, quanto mais analfabetos e maisbárbaros, quanto mais frouxo o controle dos órgãos repressivos, quanto mais próspera a cultura da violação massiva dos direitos humanos e do clima de guerra, mais violento ele tende a ser. Basta, para isso, observar os números dos EUA e do Brasil frente aos demais países citados (aquele com Gini 0,45 e este com Gini 0,51; aquele com 4,7 assassinatos para cada 100 mil pessoas e este com 27,1).

 

Cada país tem sua história, sua realidade, suas tradições, suas culturas. Cada país tem um tamanho físico e uma determinada população. Nós não podemos, portanto, buscar comparações absolutas entre eles. Não podemos comparar o Brasil (com mais de 200 milhões de habitantes) com a Islândia (com 350 mil). A tarefa que nos cabe, que eu penso que ajudaria muito o Brasil nesta situação extremamente desgraçada e sanguinária em que se encontra (16º país mais violento do planeta), consiste em ver o que os 18 países selecionados fizeram para reduzir drasticamente a violência. Não temos que comparar os países, sim, comparar as políticas públicas sociais, econômicas, políticas, jurídicas e particularmente criminais de cada um deles. Com base nelas (em dados objetivos) é que estamos capacitados a julgar as políticas criminais como prósperas ou fracassadas.

 

Nessa área, carregada de emotividade e passionalidade, é impressionante como alguns povos e os governantes escolhem o caminho da destruição e da irracionalidade (tal como o povo troiano fez, diante do presente deixado pelos gregos: o cavalo de Tróia). Caminha-se pela via mais insensata possível, protagonizando-se um jogo de perde-perde, autodestrutivo, suicida ou genocida (ou os dois ao mesmo tempo). O campo da política criminal vem se mostrando um dos terrenos mais férteis para a irracionalidade política (Cassirer: 2003); nesse sentido contraria frontalmente a filosofia política e a economia modernas: para a primeira, todo ente vivo deseja preservar o seu ser, deseja viver, crescer, reproduzir-se; para a segunda, todo agente tem interesse em aumentar seus ganhos. Muitas políticas criminais fazem o oposto: tendem à autodestruição, à derrota, à irracionalidade (Renato J. Ribeiro). Como se trata de uma escolha coletiva (povo e governantes), pouco espaço existe para os alarmes, para a sensatez. Em razão da morte de um soldado, uma Corte egípcia condenou 529 islamistas à forca (a barbárie sempre surge como a sombra incivilizada do crime e do castigo). Ferrajoli bem explica o quanto a história da pena se mostra muito mais sanguinária que do delito. Quando dois loucos estão em disputa, a razão nos leva a perguntar não qual deles está certo, sim, como chegaram à loucura; não precisamos escolher o demônio menos ruim; podemos e devemos repudiar todos os que optam pela violência (Renato J. Ribeiro).

 

Nos países onde o capitalismo financeiro foi domado (controlado), é precisamente onde vemos menos violência (alta renda per capita, alto nível de escolaridade, ausência de analfabetismo, civilidade, cidadania, ética etc.). Nos países onde o capitalismo selvagem corre solto, as políticas públicas, particularmente as políticas criminais, são dirigidas para alvos errados (enxuga-se gelo com toalha quente). Gira-se em torno do mesmo eixo. Sem encontrar o ponto de Arquimedes (políticas públicas socioeconômicas/educativas inclusivas, aumento da renda per capita e império generalizado da lei repressiva), buscam soluções endógenas para sua violência, ou seja, dentro do próprio campo jurídico ou criminológico e político criminal (criação de um clima de guerra permanente, aprovação aloprada de leis penais emergenciais, encarceramento massivo sem critério, frouxidão no controle dos órgãos repressivos, cultura das violações massivas dos direitos humanos e desrespeito ao devido processo legal e proporcional), quando o certo consiste em alterar substancialmente as condições exógenas (políticas, econômicas e sociais do país, como fizeram os países do grupo elitizado mencionado). Nós, criminólogos, tanto quanto o povo e as autoridades brasileiras, temos que nos desencapsular (quebrar a casca do nosso ovo para poder enxergar o mundo como ele é, fazendo-se as devidas comparações entre as políticas públicas corretas e as erradas).

 

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