A violenta sociedade brasileira e sua guerra não declarada

Publicado por: Editor Feed News
09/01/2015 20:51:03
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Cortesia Corbis
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*Rodrigo Augusto Prando

 

Tenho uma forte sensação de desconforto, incredulidade nos rumos que a sociedade brasileira tem seguido. Tenho um duplo incômodo: como cidadão e como cientista social. A violência presente em nosso cotidiano tem atingido patamares de uma epidemia, uma doença que tem ceifado vidas em velocidade e crueldade singulares.

O menino Bernardo procurou ajuda junto às autoridades públicas, mas não houve solução para o seu problema e ele foi assassinado. No Recife, um torcedor morreu depois de ser atingido por um vaso sanitário atirado de uma altura de 24 metros. Fabiane, de 33 anos, foi morta após linchamento no Guarujá, tendo prosperado um boato – nas redes sociais - que seria uma sequestradora de crianças e praticamente de magia negra. Esses são, apenas, os últimos exemplos, tristes, sem dúvida, de seres humanos que, bestialmente, perderam suas vidas. Já em 1933, Gilberto Freyre apontou em Casa Grande & Senzala que “esse sadismo de senhor e o correspondente masoquismo de escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica, têm-se feito sentir através de nossa formação, em campo mais largo: social e político” (sei que há críticas à visão do autor, mas, neste caso, ele ressalta como a violência se espraia para outras esferas sociais). Some-se a Freyre o conceito de “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda, no qual a cordialidade não implica em boas maneiras ou civilidade, antes, porém, é uma forma de relação assentada na emoção. O brasileiro, assim, seria transbordante em afetividade (para o bem e para o mal) e pouco afeito aos preceitos da racionalidade, da impessoalidade abstrata da lei. Pode-se, peremptoriamente, afirmar que o brasileiro é, em seu íntimo, violento. Em nossa sociedade, a morte violenta é parte de nossa cultura, de nossa conduta em “casa ou na rua”, para ficar com Roberto DaMatta.

Os dados corroboram esta tese de sermos afeitos à violência e podem ser encontrados na pesquisa “Mapa da Violência 2013: homicídios e juventude no Brasil” (disponível em www.mapadaviolencia.org.br). Em quatro anos, de 2008 a 2011, foram assinados 206 mil pessoas no Brasil. O trânsito, por sua vez, contribui com números não menos impressionantes: de 2008 a 2011 morreram mais de 160 mil pessoas. Somados – assassinados e mortes evitáveis no trânsito – foram 366.132 seres humanos (algo próximo a uma cidade como Jundiaí ou Diadema que desapareceriam). À título de comparação, morreram assassinadas, no Brasil, em quatro anos, mais pessoas que nos conflitos armados (no mesmo período) no Iraque, Sudão, Afeganistão, Colômbia, República Democrática do Congo, Sri Lanka, Índia, Somália, Nepal, Caxemira, Paquistão e Israel. Aqui, obviamente, temos os dados brutos, pode-se refiná-los e apreender que são jovens os que mais morrem; são os negros os mais suscetíveis à violência; os assassinatos são, muitas vezes, por motivos fúteis e quais as regiões mais violentas do país.

Em As regras do método sociológico, Émile Durkheim, ensina-nos o exercício do ofício de cientista. Explica que o “fato social” é o objeto de estudo da Sociologia e define suas características (exterioridade em relação à consciência individual, coerção sobre a consciência individual e sua generalidade). A violência, portanto, é um “fato social” e, além disso, deve ser classifica como um fato social “normal” ou “patológico”. Em muitos países, esses dados derrubariam governos, estremeceriam os alicerces da sociedade, mas, aqui, infelizmente, assumimos como um fato social normal. Ou, o que é pior, vivenciamos uma sociedade doente, numa trajetória que pode nos levar à anomia, à ausência de regras, ao esfacelamento dos laços de solidariedade social.

Falta-nos indignação, falta-nos uma verdadeira crítica social capaz de desnudar o porquê de termos uma “guerra” no bojo de nossa sociedade. E essa crítica social não depende, apenas, de intelectuais, mas, sobretudo, de cada cidadão no exercício de sua cidadania. Caso você, leitor, não se sinta à vontade com 366.132 mortos em 4 anos – com essa guerra cruel - comece a mudar sua postura. Generosidade com os mais fracos, respeito às leis, assumir uma postura de não-violência, posicionar-se contra qualquer tipo de forma de burlar as regras, seja nos aspectos mais comezinhos da vida cotidiana ou em grandes questões pode não mudar o quadro geral, mas pode, humildemente, contribuir para que dias melhores se apresentem.

 

*Rodrigo Augusto Prando é Cientista Social, Mestre e Doutor em Sociologia pela Unesp. Professor e Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie, do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas.


Sobre o Mackenzie
A Universidade Presbiteriana Mackenzie está entre as 100 melhores instituições de ensino da América Latina, segunda a pesquisa QS Quacquarelli Symonds University Rankings, uma organização internacional de pesquisa educacional, que avalia o desempenho de instituições de ensino médio, superior e pós-graduação.

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