A volta da chibata

Publicado por: Editor Feed News
21/09/2017 18:55:18
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Por Gilberto Alvarez Giusepone Jr. (*)


A Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, existe desde 1943, uma época em que a questão social era encarada pelas oligarquias dominantes como um “caso de polícia”. Dizem que, ao ser questionado sobre a necessidade de leis trabalhistas, o então presidente Getúlio Vargas teria dito: “estou tentando salvar estes burgueses burros, mas eles não entendem”.


Várias tentativas de reformar a CLT foram feitas ao longo do tempo, com pouco êxito. Nem mesmo a ditadura militar conseguiu derrubar o edifício de direitos consolidado pela CLT.


Mas agora, num contexto de recuo político dos setores progressistas, a reforma trabalhista se tornou uma das prioridades da agenda “reformista” da coalizão no poder.


Não é exagerado, portanto, afirmar que as modificações aprovadas recentemente pelo Senado se tornaram, em verdade, a oficialização de novas relações entre capital e trabalho com base exclusivamente nos interesses do primeiro.


As relações entre patrões e empregados mediadas por leis trabalhistas têm, nessas leis, instrumentos de equilíbrio. Estes são em geral bastante imperfeitos e, muitas vezes, pouco impactam na diminuição de desigualdades entre o padrão de vida dos que empregam e aqueles que são empregados.


Mas têm, acima de tudo, papel essencialmente civilizador, uma vez que leis trabalhistas visam a impedir que a utilização de mão de obra se dê sem garantias à integridade física, emocional e intelectual do trabalhador.
Assimiladas pelas práticas de intermediação sindical, as leis trabalhistas se incorporam aos repertórios de luta política da classe trabalhadora em suas muitas nuanças, e são reivindicadas como direito, uma vez que as negociações dizem respeito à objetividade da luta por melhores salários e à subjetividade da luta por melhores condições de vida e por respeito à voz de quem trabalha.


A reforma que foi levada a efeito aprofundou um impressionante desequilíbrio entre as partes. Foi concebida apenas com base em reivindicações patronais e defendida com argumentos que contrapunham o “moderno” ao “arcaico”.


Essa “modernização” correspondia a retirar direitos denominando-os de entraves e a fragilizar as condições da pessoa contratada com a indicação de que seus direitos correspondiam a arcaísmos corporativos.


O argumento base, de fundo bastante violento, é o de que os direitos conquistados retiravam competitividade da economia. Competitividade é palavra-chave do diálogo entre os estratos mais ricos da sociedade e seus representantes parlamentares.


O presidente da Câmara dos Deputados emitiu opinião de que a Justiça do Trabalho não deveria existir. É importante registrar que essa fala se deu na formalidade do cargo, porque assim passa a fazer parte dos anais do Parlamento brasileiro.


Trata-se de uma fala bastante coerente com o que aconteceu na sequência, pois a Justiça do Trabalho não teria como fechar os olhos às claras violações de direitos pessoais e coletivos presentes no texto aprovado. Assim, coerentemente, as violações passaram a ser “a lei em si mesma”.


O texto foi aprovado com base única nas aspirações patronais, e é possível, então, deduzir da fala do presidente da Câmara que a Justiça do Trabalho “não precisaria mais existir”, tal como, de fato, se dará.
Senão, vejamos:


O trabalho de mulheres grávidas passou a ser admitido em locais insalubres.


A terceirização ampla, geral e irrestrita tornou a condição de contratado passível de grande fragmentação. Na forma como se consolidou o texto, não é mais pela falta de contratação que o acesso a direitos se evidencia, mas sim “com” a contratação que a precarização se institucionaliza.


Em nome da modernização e da eficiência as formas de contratação se tornaram exatamente aquelas que são mais convenientes para o empregador, restituindo a força de argumentos que remontam o início do século 20, quando operários ouviam de seus patrões que teriam que optar entre direitos ou salários.


Todas as correções civilizadoras ocorridas após a década de 1930 para evitar que essa chantagem se mantivesse foram desfeitas. Por isso, a reforma da CLT é destrutiva e é um retrocesso.


A representação sindical foi profundamente enfraquecida, chegando ao ponto de extinguir a homologação rescisória, ou seja, o ato de conferir se direitos foram devidamente pagos.


Mas o fim da homologação rescisória também faz sentido com o “espírito da lei”, uma vez que o não pagamento de direitos não é mais anomalia, mas sim “modernização” de cálculos, de jornadas e de modos de exercer diversas funções.


A disponibilidade do trabalhador na regulamentação do trabalho intermitente é outro bom exemplo para elucidar a coerência entre uma lei que anula direitos e, ao mesmo tempo, extingue obrigações homologatórias.
O trabalho intermitente coloca a pessoa totalmente à disposição do contratante. A pessoa contratada “por hora” está assumindo que não faz jus a qualquer componente de proteção social. Sem calcular a disponibilidade da pessoa ao evento e ao contratante, a reforma oficializa a subordinação ao chamado, que pode se dar de modo a manter o trabalhador à disposição por muitas horas e dias sem qualquer remuneração ou ainda com remuneração abaixo do salário mínimo.


Mas tudo isso tem no predomínio do negociado sobre o legislado o ápice da precarização das relações de trabalho.


Se os acordos entre patrões e empregados passam a ficar acima da lei; se as instâncias de mediação e negociação como os sindicatos passam a ser desmanteladas; se cláusulas pétreas como jornada de trabalho de oito horas dia e proibição de redução do salário passam a ser flexibilizadas conforme a circunstância, chegar-se-á a um ponto em que o desemprego passará a ser um fator de estabilidade patronal.


Isso ocorre porque a resistência ao negociado e a evocação do legislado podem ser simplesmente evitadas com a substituição daquele que reivindica por outro retirado da fila de desempregados.


A própria Procuradoria Geral do Trabalho reconhece que foi gerado um instrumento para produzir maus empregadores.


Está disponível a partir de agora um conjunto de regras que orientam como reduzir cada trabalhador a simples unidade orgânica prestadora de serviços. Não é casual o aparecimento do neologismo “pejotização”.
Todos serão desafiados a agir como Pessoas Jurídicas (PJs) individuais justamente para que contratantes não precisem agir como se fossem.


A referência feita ao início ao padrão civilizatório que estamos deixando para trás diz respeito ao reconhecimento internacional de que saúde, segurança, descanso, piso salarial, férias são mais do que direitos trabalhistas, são direitos humanos. Em outras palavras, dizem respeito a um mundo que supostamente havia deixado a chibata para trás.


Mas no caso brasileiro o que se verifica é exatamente o contrário.


A permanência de uma mentalidade escravocrata que permeia o modo de atuar das elites é visível e audível nos gestos e pronunciamentos que insistentemente pregam que o mercado precisa ser acalmado, caso contrário, crise e estagnação se apresentam.


É como se afirmassem: quem evoca direitos se esquece de “seu lugar”. E se comportam como quem presta o favor de oferecer trabalho a uma massa que, ao mesmo tempo, querem ver à distância.
O que educadores podem afirmar nesse contexto?


Os que têm experiência na educação das camadas mais fragilizadas da sociedade sabem que o tempo extra, o espaço de deslocamento, as situações de aguardo, enfim, tudo o que não aparece imediatamente é decisivo nas muitas situações de fracasso escolar.


Doravante, nas relações de trabalho, esses fatores “invisíveis” também não contarão. Mais do que isso, serão considerados parte de um arcaísmo superado pelas intenções modernizadoras dessa reforma.
Gilberto Freyre explicou que alguns pares de palavras são essenciais para conhecer o “Brasil senhorial”, o país dos sinhozinhos.


Esses pares de palavras são “casa grande e senzala”; “sobrados e mocambos”, “ordem e progresso”. Cada uma delas está presente naquilo que se tornou, entre nós, “capital e trabalho”.


Um Brasil senhorial se confirmou na dinâmica que subtraiu direitos, situação essa que se mostrará claramente quando trabalhadores buscarem esses direitos subtraídos. Estarão sós.


Perceberão a solidão em que se encontram e escutarão muitas vezes o estalar da chibata.
(*) Diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber.

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